segunda-feira, 28 de julho de 2008

Aguàrdeste ou O Sapato

Todos choram.

Velório. As velas choram cera até o pires. 14 anônimos se reúnem ao redor do caixão, sete na esquerda, sete na direita, Julio de mãos com Joana num canto. Niscia atrás do morto no centro. A única cor é a cor do luto. Som das preces, soluço de lágrimas, rubro das paredes.

Niscia não reza e seu véu apenas esboça um rosto, a cabeça pende com vagar para baixo, tudo que há nela é pesado. Sua mão sai do roçar com o negro de seu luto para o encontro com a madeira que guarda o corpo. Seu punho fecha-se enquanto imprime tanta força quanto pode. Súbito pára – censuram seu gesto.

Seu olhar congela nas pálpebras de seu marido.

- Antônio... - Niscia não suporta aqueles olhos e fecha os próprios para não ver.

-x-x-x-

Abre os olhos e vê a sala vazia, exceto pelo caixão e outra mulher. A outra fica defronte Niscia, Antonio entre ambas.

- Meus pêsames...
- Meus pêsames...

Mesmo frente a frente, não ousam se olhar. A outra também veste luto, mas calça sapatos vermelhos, escandalosamente vermelhos.

- Niscia...
- Não.

-x-x-x-

Na sala ao lado 17 pessoas vivas desvendam um morto acompanhadas de café e bolachas.

- Meus pêsames...
- Meus pêsames...

- Meus pêsames...
- Meus pêsames...
- Meus pêsames...

- Meus pêsames...
- Meus pêsames...

- Meus pêsames...
- Meus pêsames...

- (café pelando)

- (...)

- (bolacha mastigada)

- Uma tragédia...
- Sem dúvida...

- Iríamos sair este sábado...
- Estava tudo bem com ele quando nos despedimos na sexta...
- Como uma coisa dessas acontece?

- Era um homem bom...
- Pai de família...

- Seu filho sempre foi como um irmão para mim...
- E você como um irmão para ele...
- (terminando a bolacha) também sinto muito pelo seu filho...

- Quer passear Julio?
- (estende a mão)

- Mãe e filho desamparadas...
- (café) é muito injusto...

- Um homem tão equilibrado...
- Talvez fosse promovido para o mês (mais café)...
- Amava tanto o filho...

- Trabalhava muito...
- Gentil com todos...

- Se houver algo que eu possa fazer pela família...
- Fique próximo, pelo menos por hora...
- Estas horas são sempre difíceis...

(bolacha)

(ainda café)

(bolacha)

(café)

(bolacha)

(bolacha)

(café)

- Ainda desse jeito...
- Suicídio...

- De uma hora para outra...
- Volta para casa do trabalho e...
- Não explica...

- Pagava o dízimo...
- Era praticamente fiel...

- Ele disse algo à Niscia?
- Não sei como perguntar isso a ela...
- Ela está péssima...
- Julio também, quanta tristeza...

(bolacha)

- Eu lembro de uma vez, na adolescência, quando ele...
- (café)

- Jogávamos cartas aos sábados...
- O conheci no escritório...
- Faz tempo...

- A mãe dele é uma santa...
- Toda a comunidade irá apoiá-los...

- (...)
- Não acredito que ele se matou...
- (...)
- (café)

Julio está quieto na quina entre duas paredes, vive seu vazio em paz.

Quatro homens vão para uma sala mais privada fumar os cigarros de Antonio e dividir as antigas garrafas de cachaça que ele guardara – beber o morto até a última gota de aguardente, fumar o corpo até a última cinza de fumo.

-x-x-x-

É noite aberta, não há nuvens, não há quase luz na rua, não há lua. Apenas estrelas, muitas, muito mais que o normal.

Em cima do telhado Antonio ofega enquanto observa tudo isso.

- Todo nó ata e divide...
- Todo nó ata e divide...
- Todo nó ata e divide...
- Todo nó.

Sua respiração cessa, ele fecha os olhos, pende seu corpo para fora do telhado como um pêndulo e cai.

-x-x-x-

Todos choram.

Três beatas, entre elas D. Joana ajuntam-se em torno de Niscia com rosários. Homens retiram os móveis da sala.

Com a sala vazia as mulheres se dirigem para a copa, estendem uma toalha, dispõe candelabros, talheres, louça e prataria. Ascendem as velas e servem a mesa com café e bolachas. O som é o assovio das velas, o silvo da chaleira e o tilintar da prataria e da louça.

Posta a mesa elas tornam a sala, a decoram com coroas de crisântemos e mandacarus vermelhos, revoltosamente vermelhos.

-x-x-x-

Abre a porta, Julio entra na sala onde está seu pai, sua mãe e a outra, ele dá a mão à mãe.

- Ele não volta, não é?

- Não filho, não volta.

- É bom para onde ele foi?

- Não sei.

O olhar de Niscia atravessa a outra.

-x-x-x-

Toca a campainha e Niscia atende. A outra está na soleira da porta, assim que esta vê Niscia diz:

- Há dois anos que seu marido divide o amor dele entre nós, achei que você deveria saber. Ele não saberia como contar. Não vim para brigar, não me importo em dividir. Soube que Julio fez aniversário semana passada, parabéns, deve ser um lindo garoto.

Niscia foi incapaz de reagir. Assim que terminou a outra deu as costas e foi embora.

-x-x-x-

A outra foi incapaz de sustentar o olhar de Niscia, abaixou seus olhos e fixou-os em Antônio.

- Com licença... - Niscia soltou a mão do filho e saiu da sala.

Ao chegar ao banheiro ela abriu a torneira para escutar a água. Retirou o véu e cravou os olhos no espelho. Não podendo fazer mais nada, retirou o vestido do corpo, o espelho da parede e sentou-se no sanitário com o espelho nas mãos. Melhor, com o espelho nas luvas porque as luvas ela não tirou, não poderia.

Viu seu desconfortável corpo nu e contorcido sentado no sanitário, achou-se feia. Travou-se no reflexo dos olhos até ver neles Antonio.

Urinava, muito, descontroladamente; Não dava conta disso.

Assim que sentiu completamente vazia limpou-se, pendurou o espelho e fechou a torneira.

-x-x-x-

- Você era amiga do papai?

- Eu era.

- Você sente falta dele?

- Você sente?

- Muita.

A outra encara os sapatos vermelhos sob o véu, constrangida com aquele garoto, aquela forma viva que ela sempre soubera que existia e sempre ignorou. Agora ele era mais Antonio para ela; qualquer coisa que fosse dele, sua mulher, seu filho, sua casa, sua bebida, seu pó, seu resto. Tudo aquilo era Antonio para ela.

-x-x-x-

Rute viu Antonio na platéia, reparou que durante todo o espetáculo ele não pôde tirar os olhos dela. Isso ocorria com freqüência, mas esta fora uma das poucas em que isso a interessara.

No fim do espetáculo ela pediu ao produtor que o chamasse para o camarim, que dissesse que alguém do elenco gostaria de conhecê-lo.

Rute estava terminando de se trocar quando Antonio entrou.

- Quer me conhecer?

- Não, o produtor disse que você queria.

- Ele disse isso porque achei que você quisesse.

- Por que você achou que...

- O que você lembra do espetáculo?

- Quase tudo, ótima estória...

- Que personagem o velho fazia?

- Eu... Não lembro.

- Por isso... Está bem. Se você não quer me conhecer pode ir embora então.

Antonio voltou-se para a porta, mas hesitou. Olhou Rute:

- Suponha que eu queira te conhecer...

- No sentido bíblico?

Desde aquele dia, sempre que Rute estava em cartaz, Antonio dividia seu amor entre a esposa e a atriz.

-x-x-x-

Niscia entra na sala seguida por Joana - mãe de Antônio - e duas beatas. Niscia permanece no mesmo silêncio de outrora, agora mais vazia que antes, as três se impõem na força de seu rosário.

- Niscia...
- Não.

A outra não se pode mais conter, pende a cabeça e em silêncio sai da sala.

Niscia retoma sua posição enquanto as beatas postam-se atrás dela, mais forte a oração.

- Meus pêsames...
- Meus pêsames...
- Meus pêsames minha nora.

- Meus pêsames. Meus pêsames Joana.

- A comunidade toda irá ajudar...
- Sua família não ficará desamparada...
- Providenciaremos advogados para os bens...
- Tutores e empregadas para ajudar com Julio...
- De confiança...
- De confiança...

- Obrigada por tudo. A ajuda é bem vinda, agora se me dão licença gostaria de falar com Joana a sós.

- Claro...
- Claro...

Sem perder a compostura, ambas saíram entre ofendidas e curiosas, como é de praxe entre as beatas.

- Existe algo a se fazer por você minha filha?

- Não. Existe algo que eu possa fazer pela senhora, minha sogra?

- Não.

O silêncio corta o ar e dança entre as velas e o silêncio do morto, tão grande que faz qualquer outro silêncio barulhento, insuportável mesmo.

Joana aproxima-se muito do filho. Murmura:

- Que seja bom onde você estiver, que sentirei falta todos os dias, que Deus lhe proverá tudo que...

- Ele tinha segredos com a senhora?

Joana não entende a pergunta.

- Eu não cobrava explicações.

- E se ele te prometesse algo que não fosse capaz de cumprir?

- Quando ele tinha nove ele me jurou de pés juntos que rezaria o terço comigo toda novena, não agüentou nem dois dias.

- Você recordou-o da promessa?

- Não, eu sou mãe, eu perdoei.

-x-x-x-

- Não durma comigo hoje.

- Perdão Niscia, eu gostaria que meu coração fosse menor, mas ele é grande, grande para dois, grande para três, grande para mais.

Os lençóis são azuis e lilás, a noite que entra da janela é a única fonte de luz.

- Eu não basto? Não sou suficiente?

Os vultos formados por ambos criam geometrias que ora se amam e ora se cortam.

- Ela cavou um espaço em mim que não existia e este espaço é dela, eu não falto para você.

Julio dorme no quarto ao lado um sono profundo, cheio de sonhos.

- O que ela tem de especial?

- No teatro, como ela brilha no palco! Ela no palco é como você com Julio... puro.

Rute se maquiava, as cortinas abririam em cinco minutos, algo nela já dizia que se Antonio aparecesse, seria apenas depois do espetáculo.

- Quando você a conheceu?

- Ela sabia como isso estava me afetando, eu não quero segredos, mas não sabia dizer, então ela tirou este fardo de mim. Eu amo ambas Niscia.

É noite aberta, não há nuvens, não há quase luz na rua, não há lua. Apenas estrelas, muitas, muito mais que o normal.

Antonio não deseja ver Rute antes de juntar Niscia, então fuma. A fumaça clareia o que há dentro e esconde o que há fora, a fumaça não vem mais do cigarro, a fumaça brota direto de Antonio para Antonio. Aguàrdendo, ele anda no escritório pela noite.

Já é quase meia noite, o único que dorme é Julio; Niscia é uma pedra em sua cama – sonâmbula, congelada – Rute põe e tira a maquiagem no camarim horas depois do fim do espetáculo já certa que não verá Antonio esta noite; Antonio consome a própria vontade até que se rasgue na única certeza: não pode viver. Precisa juntar Rute e Niscia.

Depois de tragar a última gota de fumaça e beber a última cinza de aguardente a decisão se anuncia.

Os grilos são a orquestra, Antonio sobe o telhado, encara a noite, ofega e declama:

- Todo nó ata e divide...

-x-x-x-

Todos choram.

Estende-se um tripé no centro da sala, ascendem-se velas em torno do tripé. As três senhoras procedem seu rosário mais baixo enquanto Niscia se retira. Tratam de abrir a casa, cada porta, cada janela, cada portão, tudo é destrancado.

Noutro cômodo mais escuro, um homem morto, nu.

A mão de Niscia escorre o peito do homem e ela tenta fechar os dedos por sobre seu tórax, com força, com unha.

Lacuna. Gilete.

A barba estava por fazer, cuidadosamente ela passou a lâmina, aparou os cabelos desgrenhados e vestiu o paletó - como se fosse vivo.

Niscia entra novamente seguida por quatro homens, eles carregam um caixão que é posto em cima do tripé, as flores, as velas.

-x-x-x-

- A senhora nunca se sentiu traída?

- Não por meu filho.

- E seu marido, soube que ele foi assassinado. Nunca quis saber quem foi?

- Meu marido era escória, pagaria a seu assassino.

- E Julio. Como nasce um filho sem pai?

- Eu criei Antonio sem pai. Meu marido – que Deus o tenha e o castigue – morreu dias antes do parto. Às vezes a memória de um pai é melhor que o pai. É uma cruz em nossa família os pais morrerem antes de gozar dos filhos.

- Adianta perdoar um morto?

- Não. Se você culpava meu filho não volte atrás agora, perdoe um vivo, seu filho que é inocente, deixe ele amar o pai. Eles vão entrar, prepare-se.

Niscia respira fundo, reúne em si a energia para o que virá.

- Mande-os.

Joana sai ao que começam a entrar uma a uma das quatorze pessoas, entre amigos e familiares, que não se cansam de consolar.

- Sinto muito...
- Ele foi muito querido...
- Ajudaremos em tudo...
- Foi injusto, ninguém merecia...
- Não faz sentido mesmo...
- Foi para um lugar melhor...
- Minha santinha vai interceder por ele...
- Julio vai precisar da mãe mais que nunca...
- Sê forte que só assim passa...
- A memória dele fica, não esqueça...

- Obrigada...
- Sim...
- Grata...
- É verdade...
- Nunca faz sentido...
- Deus te ouça...
- Bondade tua...
- E eu dele...
- Tomara que passe...
- Não há como...

Quando o último se retira, Niscia se encontra novamente sozinha com o caixão inerte, impregnado de morte, espalhando sua essência na sala, nos crisântemos, nos mandacarus, nas velas, nas paredes, no chão, nas sombras, nas pessoas, nas almas e não sei mais em quê que não sai. Não sai.

- Antônio...

-x-x-x-

Gilete. Lacuna.

Niscia tira as luvas para barbear o corpo, suas unhas estão vermelhas, escandalosamente vermelhas; seus dedos desejam aquecer a pele fria, seus dedos desejam por si só, desejam percorrer o tórax, o abdômen.

As mãos deixam a gilete testemunhar tudo dum canto.

Niscia abandona seu luto sentindo seu corpo tão nu quanto o corpo de seu marido. Ela divide sua vida com Antonio na ilusão de que ele possa dividir sua morte com a esposa. Ela senta em cima de seu corpo morto, apalpa seu sexo, esfrega desesperadamente o dela contra o dele num instinto sem sentido, sem razão, instinto mesmo.

-x-x-x-

Quando pensa que todos acabaram a outra entra.

- Niscia...
- Não sei, eu só... Licença.

Niscia volta para o banheiro com os pensamentos tão cheios que nem a torneira aberta poderia silenciá-los, ela não sabe para onde vai, não sabe se trancou a porta, não sabe se está vestida.

Sente apenas inchaço, como se algo imenso a preenchesse, a inflamasse, algo que a toma de seus pensamentos, de suas atitudes, de seus sentidos, definitivo, congelante.

Quando dá por si não são lágrimas – É urina. Urina sem dar por isso, urina cada lágrima que não verteu de seu rosto, urina a morte do marido, urina culpa por sua intolerância. Está sentada no sanitário, nua, esvaziando cada gota de saudade em si enquanto rói o vermelho das unhas, enquanto tenta arrancar a cor de sua pele.

Rute entra no banheiro com seus sapatos vermelhos, tranca a porta, despe seu luto completamente e fica nua frente à Niscia, exceto pelos sapatos, que ela não tira.

- Suas unhas ficam lindas de vermelho.

- Obrigada. Qual seu nome?

- Rute. Não há mais ninguém com quem dividir esta ausência.

Um líquido esverdeado e quente escorre pelo azulejo do banheiro caindo do meio de um par de sapatos vermelhos, mortalmente vermelhos.

Quando o pranto de ambas acaba Rute se limpa e vai sentar no colo de Niscia, que a envolve e é envolvida. Consolo.

Frio de corpos nus, calor de corpos entrecortados, Antonio morto na sala, duas viúvas no banheiro, um filho e uma mãe sem lugar, a oração das beatas. As unhas e os sapatos vermelhos, mas tão vermelhos!

Batem à porta. Ambas vestem-se, Rute se esconde e Niscia sai. A noite afrouxa, é hora de levar o corpo.

Niscia acompanha quatro homens levantarem o caixão e iniciarem a marcha em direção ao cemitério.

As luvas de Niscia ficaram no banheiro.

Ao seu lado por todo o caminho Rute a acompanha, o salto do sapato de Rute roça na perna de Niscia, as unhas de Niscia roçam o braço de Rute.

Todos choram por onde sentem saudade.

sábado, 26 de julho de 2008

Rosas amarelas

Marcela entrou em casa com os olhos semi-cerrados. Com o cansaço do dia lhe ardendo no corpo, ela se movia ausente de si pela casa, mecânica do costume das coisas.
Lançou um olhar rápido para a cozinha: tinha almoçado? Talvez não. Não importava, não sentia fome havia muito tempo, e se tinha, o apetite lhe faltava. Limitou-se ao copo d’água corriqueiro, que teria deslizado mais refrescante garganta abaixo caso ela já não estivesse tão distante das pequenas felicidades do mundo.
Tinha tantas obrigações, tantas correrias, tantos importantes e urgentes que vivia fora de si, virtual, mecânica e prática. Um corpo jovem e condicionado.
Sobre a mesa da sala, no entanto, percebeu as flores.
Eram as suas rosas amarelas, as que comprava quase todo dia, por uma necessidade muda, para colocá-las ali, no jarro.
Mas as rosas sempre amanheciam murchas.
Mas era assim mesmo: quase todo dia era preciso trocá-las, elas não duravam. Faria isso amanhã cedo, antes de ir trabalhar.
E foi dormir, gasta que estava do dia. Do mês, do ano, dos tempos. Tempos tão corridos que ainda lembrou-se de lançar um olhar pesaroso sobre os papéis do trabalho.
Vinha pensando em ir ao médico, porque também não andava dormindo direito. Os olhos fechavam, a mente afrouxava... mas ela permanecia ligada. Se sentia como um computador, esgotado de tantas informações vazando. E não podia desligar. Passava a noite consciente de que estava dormindo um sono agoniado, meio descanso, meio cansaço. Acordava de um salto: amanheceu! E saía saltando pela casa, fugindo do atraso que nunca tivera, e que, por isso mesmo, tanto temia. É que tinha um medo toda vez que olhava para o relógio: horas, minutos e segundos, vazando loucamente, escorrendo por ela, pelas coisas. E então corria junto, para não vazar também e perder o compasso.
Naquele novo dia, que acabara de estrear, não foi diferente: na hora marcada entre o relógio e o seu corpo ela pulou da cama, e saiu apressada pela casa, revisando na cabeça o de ontem e o de hoje.
E as rosas murchas! — era preciso correr em dobro, que ainda tinha a floricultura para passar.
Correu o triplo, para garantir.
Era o jeito das coisas na vida.
E saiu de casa com a certeza consoladora de que as rosas resplandeciam sobre a mesa, jovens e formosas. Como ela não tinha mais tempo de estar.
Horas depois, chegou em casa, no momento certo, marcado.
Fechou os olhos e inspirou fundo: que dia!
E, repentinamente, calma..., um bem-estar, um prazer tão sem propósito lhe invadiu o peito! Ainda abriu os olhos a tempo de ver as rosas brilharem, sobre a mesa.
Mas aquele era um instante eternamente perdido.
Pronto. Já tinha lhe escorrido pelo corpo, já não existia mais. O ar já era denso, pesado duma agonia tão grande, tão forte.
Foi dormir seu sono sofrido de todos os dias. As rosas, sobre a mesa, no entanto, morriam silenciosamente. Envenenadas.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

tem alguém aí?
tem alguém aí?

sexta-feira, 11 de julho de 2008

o homem que lia o jornal de ontem

Quem passasse na Rua da Soledade, na frente da casa 53 pela manhã, com certeza viria dois jornais jogados no tapete da frente. Josefim tinha uns 30 anos, apesar dos cabelos grisalhos.Não saia de casa nem para comprar comida: mensalmente vinha um entregador com uma pequena sacola e deixava na frente de sua casa as comidas de necessidade básica, e por um buraquinho na porta ele passava as mãos magras com o dinheiro. Era de poucas palavras e considerado um 'louco-esquesito' pela vizinhança.

Sua fama vinha pela fato de sempre ler os jornais do dia anterior, passando a noite toda concentrado naquelas notícias deliciosamente atrasadas. Em uma de suas aparições pela rua para apanhar o jornal que o " pirralho-jornaleiro" havia posto longe de seu portão, um garoto lhe abordou:
- Seu Josefim, por que o senhor ler sempre o jornal de ontem?

- Por que você ler o jornal do dia?

- Pra saber as notícias do dia.

- Eu leio o jornal de ontem para saber as notícias de ontem, ora pois!


E entrava sem mais conversa. A cada dia a vizinhança se intrigava mais com os seus mistérios. Ele não tinha telefone, tv ou rádio! Seu único meio de comunicação era o tal jornal ultrapassado. Ele acreditava que as notícias velhas eram mais atraentes, pois podia rir delas, chorar delas ou até mesmo xingá-las e depois ler todas as desgraças, ir dormir tranqüilo. Afinal, as notícias já haviam passado e nada pudia se fazer para mudar. E assim passava seus dias sozinhos ansiando o jornal para pegá-lo um dia depois.

Certa vez, viu no jornal uma notícia de um homem que lia jornais. Surpresa. Ele havia morrido segundo a notícia. Com letras grandes e vermelhas o jornal falava de seu assassinato, quando fora pegar o jornal havia sido abordado por um moleque ladrão e morto pelo mesmo. Inquietou-se.

Sentado em sua poltrona de sempre, pensava no acontecido. Ele havia morrido? Como nunca havia percebido? A vida as vezes nos prega peças e em pleno dia se morre. O jornal caiu de sua mão.Levantou-se, foi até a janela, riu de sua própria vida, uma gargalhada leve de descanço. Foi até o guarda-roupa e pegou a arma, sentou-se na poltrona. A luz vermelha do pôr-do-sol o tentava, lhe mostrando o que fazer. E aos poucos o jornal de ontem no chão era tomado por um líquido da mesma cor do céu, o céu que trazia notícias novas.

sábado, 5 de julho de 2008

Contra a correnteza

Não sei ao certo como se conheceram, mas lembro-me bem daquele dia.

Ela o viu ali sentado, sozinho. Pousou ao seu lado, sem o menor ruído. Pôs-se a observar. Desenhava coisas que ela não conseguia entender, mas também não perguntava. Apenas observava.

Ele gostava daqueles olhos verdes, atentos, a tentar decifrar o que talvez só os dele conseguissem ver.

~~
Complexo demais.

Que nada.
Tão simples que ninguém conseguia enxergar.

~~

Não suportava quando lhe perguntavam: "O que você quis dizer com este desenho?"
Ora pois!
Não quizera dizer, estava dito!
Cabia ao leitor interpretar.
Mas isso não vem ao caso. Voltemos aos olhos verdes.

Sem dizer palavra alguma, conversaram por horas. Aquele olhar ficaria na mente por muito tempo. Parecia entender seu desespero, sua dor. E estaria sempre lá, para ouvir, acalmar, confortar.

Ele sentia algo diferente. Um gosto, um cheiro, um sei lá o que. Era estranho e bom. Como um arrepio, daqueles que se sente quando se está em perigo, ou quando o carro desce de vez o viaduto. E era constante. Durava tanto quanto os verdes ímãs atraíssem os seus olhos.

~~
Tinha olhos de metal.
~~

Ficou agarrado àquela visão, como nunca acontecera antes. Aquilo era muito forte e parecia capaz de destruir qualquer coisa que pudesse impedir sua existência.

~~
Sonhou.
E não foram os lábios o que desejou.
Tampouco os seios, as coxas.

Queria aqueles olhos,
Aquele convite a um universo até então desconhecido.
~~

É uma pena não ter passado de um sonho.
Sabia que acordaria, então simplesmente sonhou um pouco mais.
E mais.

Mas era hora de partir.
As pernas pareciam não concordar, mas ela precisava ir.
E tão silenciosa quanto ao chegar, se foi.

~~
Sua pequena utopia nunca deixou de o ser.

E a alimentava a cada encontro.
Um forte laço mantinha viva essa vontade.
Apenas a vontade. Tornar real estragaria a brincadeira.
~~


A Escolha

Sou impróprio para tudo.
O que serei da vida?
Respondam-me!
- se só posso responder -

A escolha desde agora me persegue
Devo decidir.
a Existência
despenca disso.

Tudo é impróprio.
Se é prazeroso,
não me vale a pena.
Se é valoroso
não me agrada.

Mundo cruel,
capitalismo podre,
- e pobres são meus poemas -
Sou jovem,
as rédias da existência
já me são concedidas.

Mas que tristeza infinda,
que dor melâncolica,
esta sociedade sem rumo...

O que farei?
A academia é meu destino?
Afirma o coração.
O tesouro está nas máquinas que dizem?
Acusam os neurônios.
Entre razões, emoções
em que confiar?

A eminência da escolha me atormenta,
sinto medo de perder vida.
- quero consolo de alguém... -
Quem será meu conselheiro?
Se habilitam vários...

Mas a calma chegará,
Entendo, falta tempo.
E a escolha?
o senhor milenar mostrará...