sábado, 26 de julho de 2008

Rosas amarelas

Marcela entrou em casa com os olhos semi-cerrados. Com o cansaço do dia lhe ardendo no corpo, ela se movia ausente de si pela casa, mecânica do costume das coisas.
Lançou um olhar rápido para a cozinha: tinha almoçado? Talvez não. Não importava, não sentia fome havia muito tempo, e se tinha, o apetite lhe faltava. Limitou-se ao copo d’água corriqueiro, que teria deslizado mais refrescante garganta abaixo caso ela já não estivesse tão distante das pequenas felicidades do mundo.
Tinha tantas obrigações, tantas correrias, tantos importantes e urgentes que vivia fora de si, virtual, mecânica e prática. Um corpo jovem e condicionado.
Sobre a mesa da sala, no entanto, percebeu as flores.
Eram as suas rosas amarelas, as que comprava quase todo dia, por uma necessidade muda, para colocá-las ali, no jarro.
Mas as rosas sempre amanheciam murchas.
Mas era assim mesmo: quase todo dia era preciso trocá-las, elas não duravam. Faria isso amanhã cedo, antes de ir trabalhar.
E foi dormir, gasta que estava do dia. Do mês, do ano, dos tempos. Tempos tão corridos que ainda lembrou-se de lançar um olhar pesaroso sobre os papéis do trabalho.
Vinha pensando em ir ao médico, porque também não andava dormindo direito. Os olhos fechavam, a mente afrouxava... mas ela permanecia ligada. Se sentia como um computador, esgotado de tantas informações vazando. E não podia desligar. Passava a noite consciente de que estava dormindo um sono agoniado, meio descanso, meio cansaço. Acordava de um salto: amanheceu! E saía saltando pela casa, fugindo do atraso que nunca tivera, e que, por isso mesmo, tanto temia. É que tinha um medo toda vez que olhava para o relógio: horas, minutos e segundos, vazando loucamente, escorrendo por ela, pelas coisas. E então corria junto, para não vazar também e perder o compasso.
Naquele novo dia, que acabara de estrear, não foi diferente: na hora marcada entre o relógio e o seu corpo ela pulou da cama, e saiu apressada pela casa, revisando na cabeça o de ontem e o de hoje.
E as rosas murchas! — era preciso correr em dobro, que ainda tinha a floricultura para passar.
Correu o triplo, para garantir.
Era o jeito das coisas na vida.
E saiu de casa com a certeza consoladora de que as rosas resplandeciam sobre a mesa, jovens e formosas. Como ela não tinha mais tempo de estar.
Horas depois, chegou em casa, no momento certo, marcado.
Fechou os olhos e inspirou fundo: que dia!
E, repentinamente, calma..., um bem-estar, um prazer tão sem propósito lhe invadiu o peito! Ainda abriu os olhos a tempo de ver as rosas brilharem, sobre a mesa.
Mas aquele era um instante eternamente perdido.
Pronto. Já tinha lhe escorrido pelo corpo, já não existia mais. O ar já era denso, pesado duma agonia tão grande, tão forte.
Foi dormir seu sono sofrido de todos os dias. As rosas, sobre a mesa, no entanto, morriam silenciosamente. Envenenadas.

12 comentários:

Bruna monteiro disse...

esse envenenada no final me pareceu tão cruel, a única alegria de Marcela seria aos poucos deteriorada por ela mesma? Achei cruel, mas a vida é cruel. Justifica. Mas preferiria que fosse diferente, aquilo da flor mudar marcela e não marcela mudar a flor. Mas é o que eu preferiria e não interfere tanto, contando que o texto já está feito, as flores já estão murchando e Marcela tentando dormir.

De cara ao ler o título, pensei nesse poema de Drummond e ao ler o texto eu vi uma inter-textualidade maior ainda!

"Congresso internacional do medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas."

Talvez as flores que Marcela comprasse todo dia fosse para seu interro, e a cada dia passado era uma pá cavando um pouquinho mais seu túmulo.

Bruna monteiro disse...

enterro néah? x.x

fernanda disse...

AHOAHSOAHSOA
é, enterro =P

caramba! se eu te disse que eu n conhecia esse poema de drummond? tou incrível, aqui - até as flores de drummond foram amarelas, tb Oo

serei processada por plágio
;x

fernanda disse...

quanto ao envenenadas, no final
eu morri de horror qndo li o texto já escrito, ficou mais impactante do q eu achava q ia ficar.
mas fluxo é fluxo,
já tava escrito e eu achei que no final das contas era isso mesmo.

abel disse...

E eu nunca vi rosas amarelas.

Bruna monteiro disse...

e esse é o encanto!

fernanda disse...

EI! rosas amarelas existem sim! \hum\
só são pouco comuns
minha vó tem no quintal =)

Bruna monteiro disse...

ahh perdeu o encanto! ¬¬
IHIAHSIAUHSUIAHUSIAAS. brinks!

fernanda disse...

eu podia apostar que bruna ia dizer isso!
\hum\
mas o encanto estava em ele nunca ter VISTO uma, n saber q uma rosa amarela existia
aoshaoshoahsoa

:Q

abel disse...

eu sei que existem! xD

mas nunca as vi x(

(tente entender como uma espécie de metáfora ^^)

fernanda disse...

oashoahsoahosaho
oks, oks
vamo deixar as rosas amarelas pra marcela, mesmo :Q

Diogo Testa disse...

vou lá de novo

1-) É interessante notar a mudança no estilo do texto anterior para esse. Os períodos mais secos. A terceira pessoa, a falta de pensamentos e falas da personagem. O distanciamento tornou a personagem mais fria que as personagens do outro texto. Ponto, posto que para esse texto essa persongem fique melhor mais fria.

2-) Há algumas passagens que gostei muito, vou destacar: "correu o triplo, para garantir", "ausente de si" "gasta que estava [...] do tempo"

3-) ponto pela velocidade do prazer da flor, eu senti o tempo que ela admirou, quase inconsciente, a flor, para depois a consciência policiá-la de que ela não tinha tempo para fazer isso.

4-) coisinha besta: O sexto e o sétimo período começão com "mas", agora o sexto tem apenas uma linha e talvez o sétimo pudesse começar direto de "Era assim mesmo".

Parabéns mesmo, quero mais =o)